A minha viagem com Dámaso Alonso

César Morán Cantautor, compositor e escritor

Artigo : ” A minha viagem com Dámaso Alonso “

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[Este artigo foi escrito em 2016 e nunca publicado até hoje. Agora dou-no a lume em homenagem a Ricardo Carvalho Calero, uma vez que a RAG lhe dedicou as Letras Galegas. Os quatro anos decorridos enquanto se mantivo inédito configuram acaso uma nova perspectiva para olharmos a realidade]

Santiago de Compostela. Trem Talgo procedente da Corunha com destino a Madrid-Príncipe Pio próximo a chegar por via primeira andém primeiro. A parada será apenas de três minutos.

Trabalho no instituto do Carvalhinho. É o meu primeiro ano de docência e vou para alá. O Carvalhinho vem sendo ainda um dos lugares onde param todos os trens… De facto é a única parada até Ourense. Tivem sorte, que me permite viajar confortavelmente e não usar o automóvel que não tenho. E já vejo vir o comboio entrar pola esquerda e toda a gente a se juntar na beira da via. Entre todos alguém que me chama, que se dirige a mim:

–É Dámaso Alonso… Podes-lhe ajudar a que sente e colher-lhe a mala?

Quem me falava era Ramón Lorenzo, que me dera aulas na faculdade havia pouco. Ajudei o insigne professor a tirar o gabán e a se colocar no assento que correspondia, e timidamente solicitei poder acompanhá-lo. Ele dixo que sem dúvida, que era um prazer e que sentasse ao seu lado. Eu era bem consciente de com quem estava, o ilustre filólogo, o estudioso de Góngora, o poeta do 27, o Diretor da RAE “limpia, fija y da esplendor”, e sentim-me privilegiado por essa situação que me deparara a sorte. O trem avançava e a conversa começou. Que vinha de dar umas palestras na Galiza, a última em Ferrol.

–O tema…?

–“Mi obra”. “Mi obra poética”.

–Ah! E podia ir também de avião…

–“No. Prefiero el tren. Me gusta ir mirando el paisaje”.

Então eu procurava a conversa mais ajeitada para o caso… Lembrei que em quinto de carreira nos dera um curso monográfico sobre o 27 o professor Juan Manuel Rozas. Os dous meses e meio que estivo em Compostela dedicou-se a comentar dous poemas, que eram “Oficina y denuncia” de Lorca e “El vals” de Aleixandre. Não, não era o pequeno vals de Lorca, o que mais tarde haveria de musicar Leonard Cohen. Era o vals de Aleixandre. O de Lorca, como dixem, era “Oficina y denuncia”, de Poeta en Nueva York. Do professor Rozas aprendim muito. Despois do Nadal já não seguiu em Compostela. Ia-lhe mal o clima, comentou-se. Mas lembro o seu falar em cada aula. Como é possível que em dous meses só comentasse dous poemas? Era, porque falava do todo desde a parte e da parte desde o todo, e eu reconheço que esse sistema intentei aplicá-lo à minha vida, ao meu humilde discurso e ao que tento transmitir aos meus alunos. Portanto o professor, a partir dos poemas, levava-nos ao universo, que se no surrealismo de Lorca está o tradicional da cultura andaluza, que se Aleixandre de moço poderia ter sido un grande bailador…, ou as mil histórias da Residencia de Estudiantes, as histórias de Dalí, Lorca e Luis Buñuel e se quando Federico estava não fazia frio nem calor: hacía Federico. Era um apreender o mundo como em Proust un universe dans une tasse de thé ou como o recendo do pão em Cunqueiro. E foi nessas divagações quando apareceu a anedota de Valéry. O professor Rozas contava que um dia Dámaso Alonso lhes falara de Valéry e entre outras cousas lhes comentara que, a seu ver, Valéry era um “ripioso”.

O aluno Juan Manuel Rozas, num posterior “aparte”, atrevera-se a lhe dizer a dom Dámaso que, humildemente, ele não o via assim. Aceitemos estarmos ante quatro gerações em ordem cronológica: a de Valéry, a de dom Dámaso, a do professor Rozas e a minha mesma, e se eu agora conto esta anedota aos meus alunos já são como mínimo cinco gerações. Pois bem, naquela viagem de Santiago ao Carvalhinho, que já na altura não iria mais alá da hora, eu perguntei ao diretor da RAE por que Valéry era um “ripioso”, e ele não mudou de discurso. Valéry era um “ripioso” porque se notava de mais na sua escrita que estava pendente da rima dos versos seguintes e forçava a palavra precedente para rimar com os versos posteriores, o que mermava a todas luzes a frescura da expressão poética.

A intensidade do diálogo não impede a olhada tras os vidros, assim e todo. Conto-lhe que dou aulas no instituto, de língua galega. Este curso, oitenta-oitenta e um, é o segundo em impartir-se como matéria oficial no Bacharelato Unificado Polivalente (BUP), e então ele começa a falar do galego. Percorrera quando novo muitos lugares do país para a recolha da pronúncia e do léxico…, estudos dialectais que eu bem conhecia, como também conhecia o seu pensamento sobre a definição do idioma. O conceito de “iberorrománico occidental” que fixara Menéndez Pidal era incontestável, mas outra cousa era a política linguística. Interessante que eu desse aulas de galego, toda uma riqueza.

–Mas agora Carvalho Calero… radicalizou-se no seu conceito.

–Carvalho Calero, claro. Fundamentais os seus estudos…

–“Y le sigue usted en su discurso? Su postura lusista…?

–(…)

–“Huya usted de ese discurso. No es bueno para el gallego”.

De acordo, não podia ser de outro modo, e o professor Lorenzo (que passará à história como furibundo lapidador de “reintegratas”) bem pode estar contento de que o mesmíssimo diretor da RAE me pudesse aleccionar na brevíssima viagem de trem. Eu sou, como lhe digo, um humilde aprendiz, e só quero aceder à verdade mais certa. Mas o caminho não fazia mais que começar enquanto a minha viagem ia chegando ao seu fim.

Lembro esta curiosa anedota porque estes dias saiu o tema falando com os meus irmãos, e eu mantinha que uma das causas do conflito normativo na Galiza actual é que o poder político tivo e tem a colaboração dos filólogos –em boa parte–, muito mais do que em Valencia. Quando em 1995 Eduardo Zaplana acedeu à presidência da Generalitat, a sua política baseada no blaverismo contou com certos apoios mais ou menos populares, mas não avondo para que o grosso da filologia catalá cedesse ante a fundamental unidade da língua. Polo contrário, na Galiza, a Real Academia Galega continua negando, um ano trás outro, dedicar as Letras Galegas a Carvalho Calero, porque isso suporá, irremediavelmente, pôr sobre a mesa que o galego “ou é galego-português ou é galego-castelhano”. Desde esta conversa com o filólogo Dámaso Alonso até a morte do professor Carvalho passaram dez anos, e trinta e seis decorreram até hoje, quando estas linhas escrevo em 2016. O trem foi aminorando a sua marcha e eu, respeitosamente, despedim-me da eminência. Um senhor educadíssimo, como não era outra cousa de esperar, muito agradável, e alá ficou a contemplar a paisagem até Madrid, com a sua mente poética, dialectológica, estilística e gongorina… , todo um símbolo da filologia hispánica.