Cunqueiro e os Pentagramas

II EDICIÓN COCHES CLÁSICOS NO IRIXO

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

XUNTANZA DE CLÁSICOS NO IRIXO

No início de março participei, convidado por Xosé-Henrique Costas, numas jornadas on line sobre Cunqueiro que ele organizou na Universidade de Vigo, e pediu-me falar da entrevista que lhe realizara ao genial escritor cinquenta dias antes da sua morte. Comentei que, no instante de ligar a gravadora, as primeiras palavras foram: “–Eu não entendo nada de máquinas”, o que andando o tempo me fizera pensar que entrava num dos seus diversos paradoxos. Cunqueiro não entendia nada de máquinas, nem sabia de música, mas isso não lhe impedira escrever en 1933 aqueles versos de cariz futurista: “Eu nascín / –entre as zocas e os lóstregos / na metade da noite– / corenta e sete dias despois do primeiro aeroplano”, nem mergulhar nos livros de fisica do seu filho Álvaro arredor da secção áurea, da imaginação que às vezes tende a ser científico-matemática, a ideia científico-natural do Universo que Heisenberg proclamara em Estocolmo, nem introduzir pequenos pentagramas nalguns dos seus livros.

Num dos colóquios das jornadas lembrava-se a influência de Cunqueiro na poesia dos 80, e dizia Xosé María Álvarez Cáccamo que talvez o elemento menos influente de Herba aquí e acolá fosse a “atonalidade”, uma atonalidade que em nengum caso restringia a música, o qual é certo, pois toda a obra de Cunqueiro é musical. O protagonista d’ As crónicas do sochantre é músico, tocador de bombardino e admirador de Rossini. Numa passagem do relato interpreta uma marcha de reverência em Do Maior que Cunqueiro transcreve em pentagrama: clave de Fa, 2/4 e andamento de larghetto. Infelizmente tal recurso não se respeita em traduções como a castelhana de Salvat ou a francesa de L’ Harmattan. Quando o sochantre De Crozon está para morrer, pede que lhe acheguem o bombardino aos lábios, e ao ir-se-lhe o derradeiro alento o bombardino “queixouse, e dixo: ¡miii!”.

Em Si o vello Sinbad volvese ás illas vemos umas “escadas” que Sinbad assobia, igualmente em Do Maior, em 4/4 e em jogo deslizante entre o quinto e o primeiro grau imitando o som da chifra do afiador. Este recurso adquire maior funcionalidade dramática em O incerto señor Don Hamlet. A cena IV da “Xornada Segunda” abre-se com a música que vém de fóra quando Ofélia entra anunciando os cómicos de Itália. O pentagrama transcreve uma belíssima peça em Ré Maior, clave de Sol e 2/4, que eu utilicei como base em 2011 para compor o Haberá Primavera. Sobre a origem temos feito pesquisas sem nada concluínte, ainda que não semelha música popular senão mais bem litúrgica.

De quem se valeu Cunqueiro para essas transcrições? Os mais apontam a Manuel Ledo Bermúdez, “O Pallarego”, que para além de barbeiro era músico, conversador e amigo e mesmo mecenas do escritor em momentos pontuais. Talvez assim fosse, ainda que Mondonhedo é uma cunca de cultura. Qualquer dia a admirada violinista Rebeca Maseda encontra no arquivo da Catedral a origem desta música que anda a navegar polos pentagramas de Álvaro Cunqueiro.

(Publicado no número 442 de Sermos Galiza, semanário de Nós Diario, o sábado 27-03-2021)


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