O clarinete de Aquilino

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

Ando a escrever sobre um livro que me pediram resenhar, um longo trabalho documentado que fala de músicas e instrumentos e do qual hei falar aqui ao seu tempo, mas não ainda. No entanto esta tarefa deu-me a luz para o artigo de hoje, pois pensar em instrumentos electrónicos, acústicos e percutivos foi-me levando sem querer ao vento do clarinete.

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Sempre gostei do clarinete, tão melódico e às vezes tão brincador. Se me ponho a imaginar, vou direitinho ao início da Rhapsody in Blue de Gershwin, que dá passo à orquestra antes da entrada do piano, e se me deixo levar encontro facilmente o gato a deslizar sobre a relva em Pedro e o lobo de Prokofiev. A ideia de que Mozart amava este instrumento é avondo estendida, o que não estranha no génio das cem mil melodias, e entre tantas composições está o Concerto para clarinete e orquestra, ou o Quinteto para clarinete, ambos em Lá maior. O som do clarinete é uma regalia para os sentidos, nomeadamente na grandeza de Sabine Meyer, ou no mundo do jazz de Sidney Bechet e Benny Goodman até nos nossos dias.

Entre nós há clarinetistas de enorme destreza, como o meu exaluno Rafael Espido ou o extraordinário Xocas Meijide –com quem tivem o privilégio de gravar–, tão versátil em diferentes âmbitos e em modalidades de instrumento. Alguns saxofonistas são excelentes no clarinete, como o admirado Roberto Somoza, ou como também o era Pedro Iturralde, que nos deixou em novembro passado.

Para além de instrumento de banda, nas pequenas agrupações musicais do rural galego –e também em vilas e cidades– não era infrequente o clarinete, combinado com instrumentos de percusão como o tambor, o bombo e a caixa, podendo haver gaita e mesmo acordeão. Algum dia falaremos do quarteto Os Pacheco, formado em Mondonhedo em 1907, e integrado por gaita, clarinete, caixa e bombo. Mas vém-me agora à memória uma aldeínha da montanha de Ourense onde passei parte da minha infância. Terra dura e fria, tinha um pequeno grupo que tocava em passa-ruas e no café de Avelino, que era também o menzinheiro do lugar.

Um moço de nome Aquilino, filho do sacristão, tocava o clarinete com muito primor, pondo notas de cor naqueles lares onde o mundo era ainda tão primitivo, e mais o seria se não fosse pola proximidade de uma estação de trem. Naqueles anos sessenta a gente começou a emigrar à Alemanha, e eu via subir ao trem bem a miúdo, dia sim, dia também, os homens com as malas de cartão e a olhada indefinível das despedidas. A casa do sacristão estava diante da igreja, que ficava no cabo do lugar, e de aí à estação havia menos de um quilómetro polo monte arriba, entre uzes, tojos e carqueijas. Sei que a memória é difusa, mas um dia ao Aquilino deu-lhe também o anseio de emigrar, e saiu monte arriba com a mala de cartão e a ideia da Alemanha na cabeça. E quando virava a curva do carvalho grande berrou o pai, senhor Narciso chamado, desde a porta da igreja:

Aquiliiiiiiiiino! E agora como vai quedar a orquestra?


(Publicado no número 468 de Sermos Galiza, o suplemento semanal de Nós Diario, sábado 25-9-2021)


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