A Beleza

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

Mentres tomo o café da manhã estou a ouvir uma entrevista com o músico Rodrigo Leão arredor do seu novo disco A estranha beleza da vida que está mesmo a aparecer. Ponho atenção, pois Rodrigo é uma importante referência desde Madredeus. À entrevista assiste o gestor cultural Alberto Anaut, quem explica como há tempo se conheceram em Lisboa e se fizeram amigos. Como acontece nestes casos, Alberto louva o fazer do artista, puro sentimento em todo o que cria, o que compõe, sendo ele até divertido, e este salienta a liberdade que lhe deixa Alberto para trabalhar, a facilidade com que todo flui, o ambiente procurado. De súbito o meu ouvido afina-se quando, a partir do título, surge a palavra beleza para ocupar por um tempo o espaço temático. Em segundos abrolham em mim todos os adagios, e da mão de Cunqueiro aparece Rossini, as cores esvaídas, o barco na lagoa, Antonello de Mesina, o Claude Lorrain que inventou o outono, as damas de outro tempo, o “Infinito” de Leopardi, a oda de John Keats, o Mahler que agoniza em Veneza, o amor impossível de Francesca e a Ofélia pintada entre as margaridas da ribeira.

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Todo dura um instante, pois Alberto diz que a beleza é um conceito “mal visto” neste momento, que talvez no mundo da arte a beleza não é o que se busca. Busca-se mais bem a denúncia ou a crítica, “ou cousas que são mui válidas”, mas acha que a beleza está no espírito da arte. Pola sua parte, Rodrigo diz que a beleza, a vida, tem por vezes momentos mais estranhos, mas sempre há um lado da beleza que está presente nas nossas vidas.

Fico um pouco perplexo, pois é o eterno dilema que nunca se resolve, sendo reiteradas as conversas com o passo dos lustros. Quando isto acontece lembro o que dizia: um panfleto não tem por que estar mal escrito. Ou seja, que a arte pode estar mesmo no panfleto, se este estiver escrito com arte. É também voltar ao imobilismo dialético entre a dimensão social da arte (arte engagée) e a filosofia da “arte pola arte”, como se houvesse uma arte descomprometida.

E tentando uma saída, refletindo na beleza, busco as palavras de Aute: “Ese viaje hacia la nada / que consiste en la certeza / de encontrar en tu mirada / la belleza”. E busco as de Silvio: “Qué tipo de adjetivos / se deben usar para hacer / el poema de un barco / sin que se haga sentimental / fuera de la vanguardia / o evidente panfleto”. E chego à conclusão de que a beleza estática não existe. A beleza é um olhar –subjetivo, sem dúvida–, um olhar que é a viagem de Aute na procura da tua olhada, a viagem de Silvio na busca do adjetivo perfeito, das harmonias para fazer a canção deste barco, o dos homens que habitam o “Playa Girón”.

Companheiras de música, a beleza é um impulso lançado no ar e que se encontra ao achar as vibrações ao outro lado das luzes. O maior elogio é que che digam que se te via feliz e transmitias esse estado de alma ao público da sala. E perceber e sentir no momento essa aura de comunicar, essa empatia. Essa lua dourada. A beleza.


(Publicado no número 472 de Sermos Galiza, o suplemento semanal de Nós Diario, sábado 23-10-2021)


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