O ABALAR DA TERRA
César Morán: Cantautor, compositor e escritor
Este artigo ia ser escrito o 29 de janeiro. Se o escrevesse aquela noite seria algo diferente, pois é difícil subtrair-se aos impactos emocionais e, por outra parte, levo dez dias a ler comentários, crónicas, estatísticas, análises sociológicas, enxurradas verborreicas, polo que agora evito a notícia que não seria nova, e evito relatar o que é bem conhecido.
Nunca gostei dos festivais, polo menos desde as primeiras experiências de mocidade –algumas com certo sucesso–, quando começava a ver que a música ficava num segundo plano, que ganhava uma canção promotora do turismo da vila, por exemplo, ou que se produziam resultados endogámicos e estranhos. Aqueles eflúvios lembravam o mítico festival de Eurovisão, quando ainda era todo absolutamente real: uma grande orquestra ao vivo, a entrada no palco das/os intérpretes (France Gall, Raphael, Domenico Modugno, Vicky Leandros…) e os diretores respectivos a dirigirem a orquestra. Um autêntico espectáculo. Porém, os meus gostos foram mudando à vez que o festival derivava na mais insulsa intranscendência. Os anos passavam sem que mostrássemos nengum interesse polo que tínhamos como o triunfo da vulgaridade, até que em 2017 aparece Salvador Sobral, que ganha Eurovisão com a belíssima Amar pelos dois, totalmente fóra dos cânones predominantes, e dando a entender que o povo tem bom gosto e sensibilidade se a pressão mediática não vai na sua contra. Mas isso não é habitual, e no ano seguinte voltou a mediocridade.
O episódio deste ano não tem precedente, pois o “fenómeno” Tanxugueiras conleva algo novo, algo nunca visto, e em breve espaço de tempo desenvolve-se de jeito progressivo, desde três vozes espidas com pandeireta em harmonia bem acordada (fase inicial) até uns arranjos novidosos levados ao directo e uns videoclips trabalhados num conceito integrador de neovanguarda que se espalham decontado nas redes sociais. A ressonância desborda o âmbito galego e aí é que se começa a falar de participarem em Eurovisão. Quando chega o Benidorm Fest já são as favoritas do público, que as vota com altíssima preferência sobre qualquer outro grupo ou solista. Mas o júri designado por Televisión Española tinha como objetivo impedir que elas fossem as representantes, o que hoje podemos afirmar trás os dados conhecidos. Para explicar o insólito contraste (que acaba por fazer inútil o voto do público), apenas ficam duas linhas de leitura: a consigna de fazer ganhadora a candidata “a priori” ou a de impedir que nos representasse quem tinha um discurso próprio, coerente, integrador e inclusivo, tanto na estética musical e linguística como na imagem empoderada da plasticidade cénica.
Porém, nada concluiu, pois o apoio das Tanxugueiras vai em aumento dentro e fóra do país, e esse arroubo emocional que se detecta na rua e mais nas ondas, nas conversas, nas escolas, leva dentro o sentir de um povo, o de todos os povos de mãos dadas com toda a vida por diante na delongada linha do horizonte.
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