A Música da Fala

A FORÇA DESTRUTIVA DA LÍNGUA IMPOSTA

César Morán: Cantautor, compositor e escritor

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As línguas têm a sua música. Uma língua pode ser escrita, mas é essencialmente oral, pois a oralidade é a primeira imagem ou manifestação das línguas funcionais, e aí é que se pode detetar um som característico. Igual que numa orquestra, as línguas têm uma textura que depende das melodias, dos ritmos e harmonias da fala, e dos instrumentos empregados para produzir o som. Não soa igual um violoncelo que uma trompa, nem um concerto de câmara barroca que um evento pos-romântico ou contemporâneo de percussão e metal. Do mesmo modo soam diferente línguas de uma altura tonal considerável, que possuam um amplo grau de abertura nas vogais ou em cujo sistema consonântico tenham maior presença as sibilantes, as oclusivas, as líquidas, as fricativas, as nasais…, todo o qual configura essa membrana sonora que a gente percebe de uma língua desde fóra. Mas o que semelha simples análise teórica revela-se-nos altamente preocupante se pensamos no caso do galego. Os estragos da pressão continuada do castelhano durante séculos intensificam-se de maneira alarmante desde a metade do século XX, e a música vai mudando numa linha claramente desgaleguizadora.

Quando ouvimos as primeiras gravações sonoras do início do S. XX, percebemos outro jeito de falar, outro sotaque, outra pronúncia, outra musicalidade, muito mais rural decerto, muito mais próxima dos falares portugueses do norte. E se repararmos no falar dos galegos de duas gerações atrás de nós –não só escritores, artistas, mas sobretodo cidadãos do agro, do mar e mesmo da cidade–, observamos ainda umas cadências hoje quase desaparecidas, donde inferimos que a força destrutiva da língua imposta é devastadora.

Lembro que, quando por primeira vez tivem consciência do galego como língua diferenciada, havia alguns traços do idioma distintivos, entre eles a inexistência do som fricativo velar [x] –como para pronunciar em castelhano “jamón”, “monja” ou “ligero”–, deixando agora de parte o fenónemo dialetal da “gheada”, para cuja origem há diversas hipóteses. E no entanto, aqui vem o enorme paradoxo: quem se pare a ouvir hoje como falam os galegos, terá uma leitura bem contrária, pois observará de contínuo a pronúncia à castelhana de palavras como Feijóo, Rajoy, Sanjurjo, Araújo, Tojeiro ou Gestal [x], em vez da pronúncia palatal galega [ʃ], como “ch” francês (charme) ou “sh” em inglês (shadow). E esta é outra música que soa lamentosa, triste e dura, pois parecemos um país de asperezas guturais ilimitadas. Para paliar esta ridícula situação –ainda que foi antes–, os filólogos melhor intencionados decidiram eliminar essas letras “conflitivas” (inequivocamente galegas) e grafar de modo antietimológico “Feixoo”, “Raxoi” ou “Xestal”, com o que a desfeita subsiste e se agiganta.

O problema de uma orquestra, se existir, não está nas partituras, senão na própria música e como se interpreta, mas a partitura, como a ortografia, deve ser lógica, fundamentada e coerente.


Publicado no suplemento semanal de Nós Diario, sábado 26-03-2022


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