O VALOR DE JEI NOGUEROL
César Morán: Cantautor, compositor e escritor
Vou deixar a um lado os eufemismos e as atitudes hipócritas. Quando ouvim por primeira vez esta canção, nos últimos setenta, chorei. Quando dei em ouvi-la no início do milénio chorei outra vez, e segue-me a comover se por acaso a escuito, como por exemplo num programa de rádio há pouco tempo, onde saía o drama migratório. “Hannover 20-4-70” publicou-se no disco de Jei Noguerol Denantes dos vinte anos (Edigsa-Xistral 1976), o seu primeiro LP, depois de terem aparecido duas das canções como singles já em 1971.
Ainda que seja paradoxal, o tema comove por se tratar de uma letra prosaica e não poética, pois é a carta que um moço no serviço militar recebe do seu irmão emigrado na Alemanha, e começa como todas as cartas desse tipo: “Já vemos que estades bem, polo que nos alegramos. Nós por aqui, bem tamém, como sempre imos tirando…”. Esse contraste entre o natural da expressão e o drama humano que reflete está a contribuír ao desgarro emocional, que no caso galego semelha endémico mesmo hoje, ainda que não para todos. Nos meus últimos anos de docência, marcados em parte pola chegada de imigrantes, houvo que explicar que nomeadamente nos dous últimos séculos éramos e fóramos um povo emigrante.
Jei Noguerol também é emigrante. Antes dos vinte anos foi para Barcelona onde estudou e trabalhou, e encontrou uns músicos extraordinários que nas gravações e os arranjos contribuíram a que o cantautor galego desse um passo renovador a respeito dos anteriores de “Voces Ceibes”. No disco que nos ocupa, os arranjos de Enric Herrera têm ainda o contributo de músicos que nós tanto admiramos como Rafael Zaragoza “Zarita” ou Xavier Batllés.
“Hannover…” começa em Fa menor, criando um clima lírico de dor desde os primeiros compassos com a corda e o vento que acompanham a voz na linguagem coloquial. O modo menor deixa passo ao harpejo da guitarra em maior para expressar “a ledícia que tivemos ao ler a tua carta”, mas ao pouco modula a Fa sustenido –e assim se vai manter até o fim– quando o irmão mostra o desejo de ver o Pepinho “que já começa a falar (…) e a nós nem nos conhece, e isso que somos seus pais”. É o que lembramos os que temos memória: nenos e nenas a viverem com os avôs mentres os pais estavam na Alemanha ou em Venezuela. Daí o laio de denúncia quase ao final da carta: quem terá a culpa de todo isto, “que na nossa grande Espanha não ganhemos para comer… Que lhe vamos fazer!”.
Sempre me pareceu que este disco de Jei tinha mais valor do que se lhe deu no seu momento. Às vezes a cultura funciona em cenáculos e círculos endogâmicos, e é difícil para quem trabalha “por livre” ou é independente ver reconhecido o seu fazer. Havia pouco que saíra Denantes dos vinte anos, e lembro um colega do âmbito universitário que o menosprezava, dizendo que tinha o atrevimento de citar Castelao numa das letras (o que é certo), como se só os “intelectuais” ou iniciados tivessem o privilégio de o citar. Mas felizmente as obras ficam aí.
(Publicado no número 579 de Sermos Galiza, suplemento semanal de Nós Diario, no sábado 11-11-2023)
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