O QUE A MÚSICA TRANSMITE
César Morán: Cantautor, compositor e escritor
Estava a matinar no tema deste artigo e veu-me à memória a canção do Caetano “Rai das cores” (Estrangeiro 1988), onde os adjetivos cromáticos vão virando desde o denotativo do início até o conotativo do fim. Também pensei intitulá-lo “As cores dos tons” ou “As cores das tonalidades”, que é a onde quero ir, mas deixemo-lo, que soa melhor assim.
Se digo que uma música tem uma determinada cor, estou a falar de sinestesia, mistura de sensações pertencentes a vários sentidos, no que se baseia a maior renovação poética desde o simbolismo da segunda metade do XIX. Porém, a minha experiência desde novo foi mais alá, até identificar palavras com cores, talvez apenas polo som produzido na sua pronúncia: nomes de cidades, países, substantivos abstractos como amor, bondade, ira ou justiça, ainda que nessa associação pudessem intervir outros conhecimentos. Mas a sinestesia na música foi desenvolvida entre outros por Alexander Scriabin, quem estabeleceu associações de acordes e tonalidades musicais com cores determinadas, e ainda relacionando-as com emoções ou “estados de alma”.
Nesta linha, certas tonalidades expressariam certos sentimentos, ou mesmo cada tonalidade nos remeteria a um sentimento dado, apenas pola sua sonoridade. No entanto, face a isto estão as palavras de Debussy (“A música fixo-se para o inexpressável”), que Luísa Villalta cita no seu artigo “A língua dos sons” de 1986.
Já desde o Barroco, os sentimentos ligados às tonalidades foram explorados por músicos e analistas como Johann Mattheson, Jean-Philippe Rameau, Johann Joachim Quantz ou Marc-Antoine Charpentier. A este respeito tem a ver, também no Barroco, a conhecida como “doutrina dos afetos”, segundo a qual determinados recursos compositivos podiam despertar no ouvinte emoções concretas e comuns. E ainda mais, nesta procura de relações entre as palavras e a música, chegaram a afirmar que uma ideia musical não era apenas a representação de um afeto, mas a sua verdeira manifestação. Trata-se de um tema apaixonante e de enorme interesse, embora muitos achemos que as sinestesias são ou podem ser diferentes em cada ouvinte.
Para alguns autores haveria uma associação entre os tons e as cores, e daí com determinados sentimentos, de jeito que o Ré maior seria duro, alegre e às vezes guerreiro, enquanto o Sol menor seria terno, afetuoso, sério e magnífico. O Lá menor seria melancólico, suave e queixoso, e o Fá maior generoso, majestoso ou mesmo furioso. Não seguiremos por aí, mas os que tocamos guitarra colocamos a miúdo o capo ou braçadeira num determinado traste para facilitar a postura dos acordes. O capo no segundo traste permite tocar o Fá sustenido menor como se fosse Mi menor, e o capo no quarto facilita tocar Dó sustenido menor como um simples Lá menor. Porém, o resultado não é o mesmo, não só porque o som das cordas premidas sejá mais tensionado que o das cordas em aberto, senão porque o Fá sustenido menor soa diferente ao Mi menor. Tem outra cor.
(Publicado no número 588 de Sermos Galiza, o suplemento semanal de Nós Diario, no sábado 13 de janeiro de 2024)
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